Águas passadas
Na hora não vi que a espuma tinha desaparecido. O que escorria por meu corpo, a caminho do ralo, era apenas água. Quente, limpa. Água de um banho seco de emoções, banho de quem se esfrega em lembranças, não deságuam, nem deveriam. A cabeça baixa, de modo receber no pescoço e nas costas o que antes foram carinhos. Não saberia dizer quanto tempo fiquei a senti-la. Deslizava sobre mim com imagens tão nítidas, ali o calor congelou sensações. Mãos acariciaram-me com a suavidade do beijo mais terno, com a vontade das correntezas violentas. Continuei quieto, alheio aos momentos aquém, revivi inconsciente a sensualidade instantânea e ao mesmo tempo riscada a ferro. Olhei fixamente meus pés, não me pertenciam. Depois tudo me pareceu pouco mais que um instante traído.
A mesma água que esquenta e acolhe me expulsa em prazeres fugazes. Corro para eles e te percebo fria. Tento te envolver com a ansiedade escancarada. Toco seu corpo e espalho carinhos e censuras. Você gosta e se afasta, afoga-se em ladrilhos inundados, mas ainda dão vau. Deixa uma mão, puxo e escorrega. Me afogo com você. Te abraço em profundidades efêmeras e consigo te reter, quieta, tensa, emboscada de gozo. As mãos deixam-se conquistar os corpos sensíveis e cismados. As bocas vacilam, tocam-se e tangenciam. Agora já se enredam sem forma, são uma anatomia única, se entrelaça e ofega. Te tenho. A água inunda e você parece confundir-se com o líquido que me escorre. Eu mesmo escorro. Não somos mais que corpos fluidos, tentam retomar formas sensatas.
Inspiro em alívio. Deixo o banho esfriar o rescaldo queimante. A cabeça, ainda baixa, não quer rever os ladrilhos, tenta dilatar os momentos que correram por lugares já apagados. Inútil. As fantasias se desfazem lentas e já sinto as gotas como picadas que gritam. Espero paralítico por uma decisão, não tomo. Quero recobrar a meada, mas o fio vai longe. Esperneio em distrações caladas, não me levam mais que à torneira. Cesso a água agressora. Busco a toalha e cubro o rosto. Estou só.